Era sexta-feira ao entardecer e o menino já observava a mãe preparar a difícil jornada que, como de hábito, fariam.
A casa simples, de taipa. Localizada naquele sertão de Dois Córregos, à beira de um morro, equilibrava-se na pequena planície de onde já se arribançava um declive. Eram dois quartos e a grande cozinha, casa à maneira da época; naquela hora o fogão de lenha já resfolegava, aquecendo a todos que ali iam chegando de suas tarefas. Eram onze irmãos.
Luiz não se sentia confortável, pressentindo o que estava por vir... Aquelas idas às reuniões lhe davam calafrios só de pensar! Como seria daquela vez? Aconteceria algo que lhe daria muito medo? As dúvidas eram muitas, mas pouco adiantavam nesta hora; sem palavras, a mãe o requisitava: pegava o lampião, o manto e o olhava diretamente. Franzino por conta da febre em que quase desencarnou, era obediência e ativo às requisições da mãe; não havia questionamento possível. Saíram
Chegava escura noite de inverno. Aos poucos, a luz da casa ia se minguando dos olhares roubados para trás e em pouco tempo estavam ambos sob as copas das grandes árvores, rumo àquelas paragens distantes. A trilha era pequena e o lampião fazia uma grande bolha na mata; Dona Ilda, à frente, ia iluminando o caminho esguio e Luiz grudado ao vestido da mãe, sentindo o peso, frio e lúgubre, da escuridão a bater nas costas. Aqui ou ali um som chamava a atenção; era a vida da floresta a resvalar em uma folha, num galho, dando pitada tensa à caminhada noturna.
Após o que pareceu uma hora e pouco de caminhada, a trilha começa a ficar mais larga e plana. Aos poucos as árvores vão se distanciando uma das outras e sinais de vila começam a brindar os caminhantes cansados, aliviando Luiz. O Lampião já combina sua luz com outra de alguma fonte muito fraca à frente; uma porteira está aberta, um cão magro e escuro se aproxima preguiçosamente, assinalando definitivamente a chegada ao destino. Num repente, dão de frente para uma pequenina vila. Uma mulher é ajudada a descer um outro acesso pelo barranco ali perto; também chegavam para o mesmo fim. Estavam finalmente no pequeno centro espírita do senhor José Ramalho; era agosto de 1929.
Todos vão chegando e adentrando o recinto. O pequeno barracão era a sala única onde se desenvolviam os trabalhos. Sua estrutura era comum às construções daqueles rincões remotos: quatro grossos mourões faziam os cantos e sustentavam o teto de ripas e telhas artesanais. Paredes de barro, brancas com rodapés de azuis claros e disformes; o chão era de tijolos batidos. Uma janela lateral aberta dava para um escuro longínquo, e Luiz preferia não olhar para lá. Ficava ao lado da mãe, sentado num dos compridos bancos de madeira. Havia crianças, mas prevaleciam as mulheres adultas; alguns homens com o chapéu por sobre os joelhos; um idoso à porta impacientemente se esforçava para ver se alguém mais vinha lá por baixo, por entre as árvores.
São oito e meia e a pesada porta faz seu rangido singular, empurrada pelo mesmo idoso da entrada. Para uma mesa central se dirigem algumas pessoas, que tomam seus lugares. Começarão os trabalhos.
Luiz está apavorado, pois da última feita viu um homem dizer que via um espírito! Aquilo era simplesmente pavoroso! Então, haveria espíritos ali, e também nos outros lugares? Estava aflito, e começa a rezar em silêncio, pedindo a Deus que o protegesse daquilo.
Senhor Ramalho é o último a sentar-se à mesa. Homem forte, alto, com sorriso discreto, é o único a passar algum sossego a Luiz. De fato, Ramalho refletia serenidade em seu jeito de andar, olhar, falar. Lacônico, quando necessário sempre está disposto a ouvir cada um que chega àquela reunião, como um irmão distante. Dedicado aos estudos dos livros da Codificação Espírita, trouxe àquelas bandas a novidade das reuniões espíritas, praticadas por sua família em Araraquara. Simpático à doutrinação, é ele quem dirigiria os trabalhos dos médiuns.
Todos ficam em silêncio. As lamparinas dos cantos são apagadas uma a uma por alguém e em breve fica aceso apenas um lampião suspenso acima da mesa central. A ansiedade aumenta e aqueles segundos parecem horas a Luiz. Logo, Ramalho começa a orar:
- Que Deus nos abençoe e ilumine neste momento sagrado. Pedimos à virgem que interceda para que os bons espíritos possam vigiar e aquiecer a nossos intentos cristãos, materializados nesta singela reunião que aqui desenvolvemos. Sabemos de nossa imperfeição, enquanto homens e médiuns, mas damos neste momento o que temos de melhor em nossos corações para que Jesus possa completar este banquete que está por iniciar...
Luiz está inquieto, mas as referências a Jesus e Nossa Senhora caem como um manto de calmaria em seu coração. Apesar da insegurança, apega-se àquelas palavras santas e espera os próximos passos da reunião. O senhor continua a falar:
- Vamos ler um trecho do evangelho...
Após a leitura de edificante passagem sobre a vida após a morte e seus meandros para os homens de bem e aos maus homens, o amoroso dirigente comenta o trecho tendo por destino as explanações evangélicas do Espiritismo Cristão. O ambiente transpira a Luiz uma harmonia e um calor peculiares. Apesar da escuridão, pode-se observar muitos dos assistentes orando com as frontes baixas. Uma criança dá um início de choro, mas logo se detém voluntariamente, rendida pelo sono.
Ramalho então acena para os trabalhos propriamente mediúnicos. Levanta-se rapidamente para arrastar a própria cadeira mais para perto da grande mesa e coloca-se em prece, cobrindo a cabeça curvada com suas grandes mãos. O silêncio agora é absoluto e só resta a todos aguardarem as manifestações por virem. E então o dirigente, após esfregar uma das mãos à testa, profere:
- Irmão Clarisse, há um amigo triste aí a seu lado, deixe-o falar através de ti!.
Luiz ficou aterrado! Como poderia !? Ele não via nada ali e segundo o homem havia algo! Como poderia o Senhor saber sobre o espírito? Os questionamentos inevitáveis, enquanto a imagem do caminho de retorno à casa começava a assombrá-lo... Andar por aquelas trilhas, abraçadas por árvores grandes e esquisitas. Certamente, os espíritos logo iriam atrás deles!
- Ai amigos! Nem sei o que dizer... – São as primeiras palavras da médium Clarisse, já envolvida pelo Espírito comunicante. Dona Clarisse, de voz doce e meiga, e mesmo dando palavras ao comunicante, enternece a todos com sua manifestação. Mãe ainda na adolescência, perdeu o filho de febre amarela. Filha de pais italianos e fervorosamente católicos, trabalhou arduamente no cultivo do café, juntamente com o marido Onório. Ambos, sem terem mais filhos, dedicaram-se a ajudar parentes e amigos próximos, distribuindo o pouco que juntaram nas décadas em assistência aos que a eles recorriam. Era em seu sítio que estava instalada aquela chopa que servia para as reuniões do centro espírita. Aos sessenta e três anos, dedicava-se com afinco às obrigações do grupo, dando-se à conservação do centro e à tarefa mediúnica com Jesus.
- Pode falar-nos, amigo. Aqui estamos para, com amor, ouvi-te! – Diz Ramalho, com voz calma e terna.
- Ah! São tantas as dores que tenho passado... As palavras seriam insuficientes! Venho até aqui porque em lugar algum encontrei quem me acudisse! Desde que tudo mudou, estou muito triste, pois não conseguia mais ser ouvido por minha família, falava mas não me ouviam... Aí vieram alguns homens estranhos e me disseram que eu havia morrido! Oh! Como posso ter morrido, se estou vivo!
Todos ficam tocados com as palavras do comunicante. Alguns se olham, a comentarem; não falta um ou outro que gesticula desconfiado. São quase trinta pessoas presentes na assistência. Todos aguardam. O Espírito diz mais algumas coisas, e faz pausa.
– Mas a vida nunca termina, meu cansado amigo... – retoma com voz calma Ramalho – Entendemos vosso sofrimento, mas o mesmo se dá por não ter o conhecimento de vosso estado. Livrou-se de vosso corpo, mas és espírito imortal! – conclui.
Neste instante, uma voz soa de outra direção, vinda de outro médium num canto escuro da mesa:
– Antônio! Antônio. Sou eu, vossa Flozina!
Dona Clarisse mediuniza então o espanto do Espírito comunicante - Mamãe! Mamãe! Oh! Quanto tempo este coração esperou para encontrar-te, quanto tempo! Estou te vendo! Falas comigo! Mas... como pode ser, se já está morta? Ah! Não importa...
Mamãe, um mundo está se abrindo a minha frente! Como te amo!
– Antônio meu filho... – continuo o novo Espírito – Nunca estive morta, pois a morte não existe; somos vivos para sempre, e agora poderás entender o que houve contigo, nos braços de vossa mãezinha terrestre!
– Oh! Mamãe... Estou entendendo... Entendo agora! Não estou mais em meu corpo... Morri naquele dia... Ai Meu Deus! Mas estou tão vivo! Oh mamãe! Vamos embora... Vamos com estes moços; quero ser feliz novamente! Deus abençoe! Obrigado Deus! Obrigado!
Luiz fica emocionado e uma paz intensa parece enevoar a sala. Seu coração parece compreender algo que não pode exprimir em palavras. Alguns a sua frente enxugam lágrimas.
O Silêncio retoma o ambiente. A emoção transborda no coração de todos, entendendo o que se deu naqueles instantes. Uma senhora muito emocionada murmura: Deus seja louvado! Os médiuns vão pouco a pouco recobrando a consciência. Dona Clarisse chora, ainda envolvida nos fluidos do grande acontecimento que participara.
De repente, vozes atribuladas são ouvidas vindo de fora do salão. A porta principal se abre e um senhor adentra dirigindo-se diretamente a mesa; fala ao ouvido do Sr. Ramalho.
Este muda a fisionomia e prontamente diz:
– Pode trazer o obsediado!
Um homem, tomado por força desconhecida, atacava os seus amigos e familiares com golpes de porrete.
Logo três homens trazem para dentro do salão um robusto senhor curvado. Ele caminha segurado pelos outro homens, como que para também não escapar. Ele passa ao lado de Luiz, que fica curioso com o repentino visitante. Pensa também no que viria a ser um obsedido, obsedado, enfim... Aqueles instantes anteriores de angelitude parecem se perder com o repente.
– Coloquemos o rapaz na mesa, para que possamos doutrinar obsessor! – Ramalho toma decisões rápidas. Ali não havia preparo para aquela situação no presente dia, mas não poderiam deixar um sofredor bater à porta de Jesus sem resposta, pensava. Iriam fazer o trabalho do mestre, e ajudar o irmão sofredor!
O rapaz é posto em uma cadeira, rodeado por outros três que olham furtivamente para os lados, amedrontados; não eram espíritas, e ali apenas estavam por entenderem como última opção ao amigo em transtorno, naquele sertão. Ramalho, percebendo o inconveniente, diz: - Meus irmãos, rezem em vossa religião, pois aqui é mais uma casa de Deus, e Deus entenderá vossos esforços para com o amigo.
Começam então a doutrinação.
– Amigo, esta é uma casa de amor. Sabes porque estás aqui? – Diz Ramalho, já inspirado pelos mentores da casa; percebera que já não era o homem que lhe ouvia, e portanto dirigia-se diretamente ao espírito perturbador.
Todos esperam atônitos. No entanto, o homem geme alguns grunhidos indistinguíveis e balança de um lado a outro; braços caídos à risca do tronco e cabeça baixa.
– Amigo, queremos lhe ajudar – diz Dona Clarisse – em nome de Jesu...
Não possível terminar-se a frase. Num movimento rápido, o homem levanta-se e com violência desfere um murro na mesa central, que se parte completamente ao meio, caindo vigorosamente no chão. Os médiuns se levantam rapidamente, alguns caem. O homem é imobilizado ao chão, mas o Pânico é geral. Luiz imediatamente entende que era hora de partir, e à porta corre desesperado, esquecendo-se da mãe... No entanto, o Senhor guardião da saída lhe dirige um gesto inusitado, colocando o dedo por sobre os lábios... era para fazer silêncio!? Como podia ser!? Ele estava desesperado e não poderia entender aquilo... Mas a voz vigorosa de Ramalho por fim interrompe a debandada geral, que já neste momento o porteiro não conseguia conter...
– Peço a todos que tomem vossos lugares. Tragam a mesa menor para cá. Foi apenas um destempero de nosso irmão em seu grande sofrimento! – Em instantes, uma nova mesa, menor, está no lugar da antiga, agora amontoada aos pedaços logo ao lado.
Rapidamente, irmãos ajudantes, dona Clarisse e seu marido, alguns voluntários saídos da assistência, ajudam a reorganizar o espaço desvalado pela interpérie. Um Jarro com água é trazido e Ramalho dele tira o líquido à caneca, sorvendo a água, de olhos fechados, em goles lentos e profundos... Todos buscam acalmarem-se, enquanto o irmão em perturbação está agora sentado em um caixote, já por própria vontade. Seus amigos, falidos pelo ocorrido, já não lhe dão tanta atenção, ajudando a recolher os pedaços da mesa, num canto e outro.
- Meu querido irmão. Temos a certeza que as palavras de Jesus lhe tocarão um mínimo, e não usará de violência para conosco. Neste momento, estamos te amando – Diz Ramalho, enquanto se ajeita em sua cadeira, a volta da nova mesa, oposto ao rapaz. Ele próprio já não dirige olhar ao obsediado, cedendo à certa tristeza que inevitavelmente lhe tomou o ato, mas não deixa de insistir na ajuda.
- Temos certeza que tem algo a dividir conosco.
Neste instante, o embrutecido homem se põem a chorar... Um choro fino e angustiante. Tenta enxugar o rosto e suas mãos grossas, e a pouca mobilidade dos dedos rústicos e inchados, comovem a platéia que atenta-se num absoluto silêncio, aguardando suas palavras.
– Estou sofrendo. Por favor. Estou sofrendo... – Diz o homem, levantando olhar desconsolado a Ramalho, depois virando lentamente a cabeça à cada médium – Preciso ter minha paz de volta. Me desculpem quebrar tudo. Não tenho vontade às vezes... Mas que ódio sinto...
– Meu querido amigo, vamos lhe ajudar, assim como Jesus vai muito mais! Peço a ti que ore conosco, pode ser? – Imediatamente, o homem sofredor coloca as mãos em atitude de prece, e curva-se sobre as próprias pernas.
Todos se levantam e colocam-se para orar. Luiz ora com fervor como nunca antes, espremendo-se entre as mãos e os olhos. Seus sentimentos se inundaram de confiança ao ver a queda do gigante em lágrimas. Já não temia àquele momento os Espíritos, se eles estão ali mesmo. Sente um amor enorme e uma vontade de abraçar a todos, como se fossem naquela noite, naquele barracão, uma família... Como se aquela oração nunca fosse terminar...
Ao longe, os pássaros cantam à floresta murmurante, e uma luz diáfana encobre o vilarejo, preparando a partida de todos, alimentada por aquele instante onírico de amor e gratidão.Espíritos da Colônia
Psicografia de Rogério S Temporini
Janeiro de 2012
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